quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O poema de areia

01/01/2011
Empenhado na construção da história paulista, Calixto pintou o padre Anchieta na praia, liberando o planalto para os bandeirantes
Caleb Faria Alves
Anchieta parece minúsculo sobre a longuíssima faixa de areia na qual escreve os 5.732 versos do seu famoso “Poema à Virgem”. Está voltado para si mesmo, inspirado, e usa uma vara como pena. A praia está tão a perder de vista que parece que sua escrita faz parte do solo, como se fosse um esqueleto que sustenta a areia sob seu corpo. Mas há um elemento que paira no limiar entre o plano divino e o firmamento, que domina os ares, que fazem também conexão com a areia: as gaivotas. Elas vêm de muito longe, como se formassem uma fila desordenada no céu. A princípio, parecem muito difíceis de distinguir; depois vão ganhando contornos cada vez mais claros e bem definidos à medida que se aproximam do jesuíta.

Foi assim que Benedito Calixto de Jesus (1853-1927) retratou a presença de Anchieta logo no início da colonização no Brasil. Os índios tamoios que o observam na imagem eram tidos como selvagens tanto pelos contemporâneos do pintor quanto pelos do missionário, apesar dos séculos que os separam. Isso, principalmente por causa dos seus hábitos sexuais e da prática da antropofagia. No quadro, no entanto, eles não só parecem inofensivos, como dão a impressão de estar entediados, cansados ou admirados da profunda introspecção de seu refém. Eles estão logo abaixo da cruz, atrás do beato, e são, ao mesmo tempo, sua inspiração e sua missão. Calixto adorava colocar elementos contrastantes em suas pinturas, e por meio deles às vezes compunha narrativas complexas.

A vida de Anchieta tem várias passagens que poderiam ter sido retratadas em telas (e algumas o foram). Um exemplo é a missa que ele rezou no dia 25 de janeiro de 1554 numa choupana pequena e humilde, e que marca a fundação da cidade de São Paulo. Há também a marcha de quinze dias que ele fez até Vitória – depois de enfrentar um naufrágio no Espírito Santo –, onde ajudou a erguer uma igreja em homenagem a São Tiago. Também poderiam servir de tema para obras artísticas as pregações que fez entre os índios até o fim de seus dias, enquanto renegava o conforto e o poder dos cargos burocráticos que lhe foram oferecidos. (...)

Leia a matéria completa na edição de Janeiro, nas bancas.

O rebelde de batina

01/01/2011
O padre Correia de Almeida usou a poesia para denunciar com ironia os problemas do Império e da República
Maria Marta Araújo
Ele era um padre que não gostava de dar sermão. Na época do Império, preferia escrever poemas criticando a escravidão, alicerce econômico do regime. Quando veio a República, passou a denunciar o autoritarismo dos presidentes e a ironizar o novo governo. Para isso, o mineiro José Joaquim Correia de Almeida (1820-1905) usou como instrumento a sátira política e de costumes. Mais do que um velho reclamão – imagem que ele mesmo gostava de cultivar –, foi um autor que hoje ajuda os historiadores a entender melhor os conflitos da virada do século XX, momento de grandes mudanças no país. 

Seu principal livro, A república dos tolos, foi publicado em 1881, oito anos antes da queda da monarquia. Nesse poema “herói-cômico-satírico”, o chamado Padre Mestre exibe uma galeria de tipos da realidade social e econômica da época, como os barões do café e os jovens bacharéis de São Paulo. Também expõe ideias correntes, como a doutrina positivista, com sua crença inabalável na ciência e na razão, e o evolucionismo, filho das teorias do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), e que integravam as novas modas e costumes, também ironizados pelo autor.

O protagonista é uma espécie de padre-poeta-músico, ou seja, o próprio Correia de Almeida. Ele ridiculariza pensamentos comuns na época, como no trecho em que propõe catequizar macacos para resolver o problema da “falta de braços” no Brasil. A obra denuncia o artifício ideológico utilizado para transformar em questão pública os problemas de uma classe em particular: “Eu necessito de auxílio/ dos grandes capitalistas,/ para ser executado/ um plano de largas vistas,/ e que é todo a bem do Estado”. (...)

Leia a matéria completa na edição de Janeiro, nas bancas.

Engenho de portas fechadaS

01/01/2011
Aos 40 anos, o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, na Bahia, está passando por restauro. A casa do século XVIII será reaberta em 2014
Desde o século XVIII, moradores e visitantes do Engenho Freguesia, no município de Candeias, na Bahia, aproveitavam a vista do mar calmo da Baía de Todos os Santos. Também se encantavam com os quatro andares do casarão, com 55 cômodos, uma capela e o acervo de mais de 200 peças produzidas desde o século XVII, entre roupas, pinturas, objetos de decoração e móveis. Na última década, no entanto, só alguns funcionários puderam circular pelo local. Sem passar por reformas desde a década de 1970, o prédio corria o risco de desabar. A um mês de completar 40 anos como sede do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, o casarão está sendo restaurado, e só deverá ser reaberto em 2014. O dinheiro é curto, mas já há muitos planos para o futuro, como expor peças de arte contemporânea nos jardins. 

No lugar onde hoje está o casarão, antes havia outro engenho, saqueado e incendiado por holandeses no século XVII. Desde que foi reconstruído, no século seguinte, passou por períodos de apogeu e decadência até chegar às mãos de José Wanderley de Araújo Pinho (1890-1967), herdeiro que idealizou o museu. Pinho ocupou diversos cargos públicos e defendeu no Congresso Nacional um projeto que acabou levando à criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O órgão tombou o casarão, e em fevereiro de 1971 o museu foi inaugurado.

“Este é um dos poucos lugares no Recôncavo Baiano que mantêm a arquitetura de engenho original. Mas não dava nem para entrar ali. Chovia dentro da casa, as vigas de madeira estavam podres. Às vezes eu penso: será que eles queriam que a casa realmente caísse?”, questiona Daniel Rangel, responsável pela Diretoria de Museus do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Dimus). O acervo, incluindo o mobiliário original do casarão, não sofreu danos graves porque está armazenado no Palácio da Aclamação, em Salvador, há cerca de dez anos. A casa ficou vazia, mas as obras só começaram em 2009. As estruturas foram estabilizadas, o telhado e os pisos foram trocados, e, até junho, toda a parte externa também estará recuperada.

O projeto recebeu auxílio da Petrobras e do governo da Bahia, mas ainda falta muito para se chegar aos R$ 9 milhões necessários para as obras. Uma etapa que precisa de financiamento é a reconstrução da fábrica de açúcar, que acabou ruindo nos últimos anos. “Visitei o museu nos anos 1980, e parte da fábrica ainda estava inteira. Tinha atores encenando como se moía a cana e fazia cachaça, naqueles fornos e panelas gigantes”, diz Rangel. A equipe também já começa a pensar em projetos futuros para atrair mais visitantes. Candeias tem uma população pequena, e poucas escolas de Salvador, a 65 quilômetros dali, tinham o hábito de fazer o passeio até o museu. As ideias incluem o aproveitamento da área do entorno, considerada patrimônio natural, para a criação de um centro de pesquisas biológicas, e a construção, ao lado, de um hotel ou pavilhão.

Os diários do imperador

01/01/2011
Documentos sobre viagens de D. Pedro II podem entrar na lista de Patrimônio Histórico da Humanidade em 2012
D. Pedro I enfrentou três guerras, abdicou do trono e morreu cedo, aos 35 anos. Coube a D. Pedro II aproveitar o lado bom da vida de imperador. Interessado por artes e ciência, fez várias viagens pelo Brasil e pelo mundo, passando por Europa, Estados Unidos, Egito, Líbano e diversos outros países. Nessas ocasiões, encontrava as elites locais, ia a jantares, museus e eventos. Tudo isso está registrado em cerca de novecentos documentos, entre diários pessoais e desenhos do imperador, correspondências, programas de teatro, relatórios de despesas e jornais da época.

A coleção pertence ao Museu Imperial de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, e acaba de entrar para o Registro Nacional do Programa Memória do Mundo, da Unesco. Nos próximos anos, o museu pretende captar recursos para digitalizar o material, disponibilizá-lo na Internet, publicar os diários e organizar uma grande exposição. E para 2012, há mais um plano para a coleção: concorrer ao título de Patrimônio Histórico da Humanidade, também conferido pela Unesco.

A primeira viagem de D. Pedro ao exterior foi em 1871, para a Europa e o Egito. A segunda começou em 1876 nos Estados Unidos, onde conheceu Graham Bell e o telefone. Nos diários, o imperador conta a experiência com o invento, que chegou ao Brasil pouco tempo depois. “D. Pedro viajou mais que qualquer governante da época. Ele tinha subvenções, mas dizem que pegou até dinheiro emprestado para viajar. Sempre trazia objetos para sua coleção particular, mas também fazia doações”, conta Lúcia Guimarães, historiadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e sócia titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

O acervo relativo às viagens foi doado ao museu, em 1948, pelo príncipe D. Pedro Gastão de Orleans e Bragança, neto da princesa Isabel. “Com o início da República, a família real separou os papéis particulares dos oficiais, e levou todos os particulares para a Europa. Só depois trouxeram de volta. Temos aqui cerca de 60 mil documentos”, explica Neibe Cristina Machado da Costa, responsável pelo Arquivo Histórico do museu. Nem toda a papelada pertenceu ao imperador. Há, por exemplo, o diário da condessa de Barral [Ver “A outra metade”, p. 20], amante que o acompanhou em algumas viagens. A coleção também inclui cartas enviadas pelo príncipe de Gales, por Louis Pasteur e por Carl Friedrich Philipp von Martius.

No entanto, o que mais chama atenção são os diários, onde o imperador descreve lugares, pessoas e encontros que teve mundo afora. “Poucos governantes deixaram diários de viagem assim. Ele foi até o Egito ver as escavações e anotou tudo minuciosamente. E sempre comparava com o que já havia lido sobre os lugares”, explica Lúcia. Segundo a historiadora, há muitas fotos desses passeios espalhadas pelos arquivos do museu, da Biblioteca Nacional e do IHGB. Com o prêmio, o material de Petrópolis estará na Internet, mas os pesquisadores ainda poderão fazer descobertas valiosas revirando os outros acervos.


Saiba mais: Museu Imperial
Rua da Imperatriz, 222, Centro - Petrópolis.
Telefones: (24) 2245-1627 e (24) 2245-1675.