sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O roubo da cabeça do Tiradentes

Todos conhecem a história da Inconfidência Mineira e seu trágico final. Nosso relato se restringe ao destino da cabeça de Tiradentes.

Depois de morto por enforcamento, ele teve seu corpo esquartejado e colocadas as partes nos locais por onde ele havia passado e falado de suas idéias de liberdade. Era a resposta do governo. Que ninguém mais ousasse se levantar contra a rainha de Portugal! A cabeça, troféu maior, foi salgada, levada para Vila Rica e colocada em uma gaiola presa numa estaca. Era o dia 12 de maio de 1792. No centro da Praça de Santa Quitéria, hoje Praça Tiradentes, ela deveria ficar até que “o tempo a consuma”.

Esse fato ocorreu com grande aparato. Tropas de Dragões se postaram enfileiradas, impondo a ordem e dando um caráter oficial ao evento. O povo se amontoava a certa distância para ver o horrível espetáculo. Na Câmara Municipal os políticos proferiam discursos exaltando Sua Majestade e maldizendo o “traidor” Tiradentes, que recebera um castigo merecido. Que isto sirva de lição a outros subversivos que ousarem se voltar contra nossa querida rainha D. Maria I!

E assim se passou. Amaldiçoado pelas autoridades, olhado com temor e admiração pelo povo, Tiradentes cumpriu a sua sina. À tardinha, todos se recolheram às suas casas, e a praça se esvaziou por completo.

À noite, ninguém costumava sair, pois a luz dos lampiões era muito fraca e todos tinham muito medo de bandidos, assassinos ou até mesmo de almas penadas. Tudo era silêncio na Praça de Santa Quitéria. Não havia viv’alma por ali. Apenas uma neblina baixa passava lenta, tapando a pouca visão da praça.

Pois nessa fria e escura madrugada a cabeça do Tiradentes foi roubada e escondida em algum lugar onde ninguém jamais a encontrou. Livrou, dessa forma, o alferes da desgraça de ter sua cabeça apodrecendo, em plena praça pública.

Alguns dizem que a cabeça foi embalsamada e colocada numa urna de pedra hermeticamente fechada depois de ser preenchida totalmente com ouro em pó e enterrada em local desconhecido.

Outros dizem que a cabeça foi roubada por um monge. Ele a guardava numa caixa e retirava de vez em quando para meditar diante dela. Meditação sobre a vida e a morte.

Uma terceira versão diz que Tiradentes tinha uma admiradora que, aproveitando-se da confusão estabelecida na praça, sumiu com a gaiola. Sua escrava ficou distraindo o soldado, que era o seu guardião, dando-lhe cachaça para beber. O destino dela ninguém sabe dizer.

A cabeça original nunca apareceu, mas uma réplica surgiu na Praça Tiradentes, dentro de uma gaiola, sobre um poste, 200 anos depois. Foi quando se homenageou, nessa data, o herói nacional e patrono da Polícia Militar mineira, Tiradentes.

As autoridades planejaram uma festa à altura. Tropas de Dragões saíram a cavalo do Rio de Janeiro pela Estrada Real e foram se revezando pelo caminho.  Homens e cavalos eram trocados até chegarem a Ouro Preto, onde os festejos em praça pública aconteceriam.

A escola de arte local havia providenciado réplicas em gesso do corpo do Tiradentes e da sua cabeça. As partes, braços e pernas foram colocados em pontos estratégicos de todo o centro da cidade. Eram tantas que dariam para formar uns sete corpos. A intenção era impressionar. Pintaram com tinta vermelha nos lugares dos cortes e a tinta fresca ainda pingava pelo chão dando a impressão terrível de ser sangue.

A cabeça foi colocada numa gaiola sobre um poste fincado no centro da Praça Tiradentes bem à frente da estátua do mártir da independência. A banda da Polícia Militar tocou acordes em homenagem ao grande herói nacional. A praça estava cheia, flores foram colocadas aos pés da estátua do Tiradentes, cantou-se o Hino Nacional e os discursos das autoridades exaltavam a grande figura do alferes, exemplo de patriotismo. Terminada a festa pública, a praça foi se esvaziando, a tarde foi caindo, tudo escureceu. Era noite fria de maio. A praça, agora mais iluminada que há 200 anos antes, tinha ainda o mesmo aspecto macabro.

Naquela noite, uma galeria da cidade havia feito a vernissage de uma exposição sobre Bené da Flauta, extraordinária figura popular que aqui viveu e atuou nos anos 70. Tal evento reuniu artistas e intelectuais e várias pessoas da comunidade, ávidas de recordações dos áureos anos 70 em Ouro Preto.

Lá pelas cinco horas da manhã, dois artistas plásticos da cidade, Gelcio Fortes e José Efigênio Pinto Coelho, chegaram à praça, vindos da exposição. Viram então a incrível cena da praça escura, com a neblina fria se movendo, iluminada pelas luzes dos monumentos públicos com a cabeça do Tiradentes lá no alto do poste, dentro da gaiola.

- Essa cabeça não pode amanhecer aqui! Disse o José Efigênio.

- Ela foi roubada há 200 anos e não amanheceu na praça. Já está quase amanhecendo. Temos que roubar esta cabeça!

O Gê, muito aflito, tentou demovê-lo da idéia, argumentando ser aquela uma festa de militares e autoridades. Qualquer loucura que se fizesse iria acabar mal. Mas não adiantou. O José Efigênio já estava lá no beco do Pilão à procura de uma escada que não encontrou. Decidiu então sacudir o poste, no que foi ajudado pelo Gê. Tanto fizeram que a cabeça caiu, mas ficou presa por uma corda. E agora? O que fazer? Havia uns mendigos dormindo aos pés da estátua do Tiradentes e com eles conseguiram um canivete com que foi cortada a corda. A cabeça se espatifou no chão. Era de gesso e ainda estava meio mole. Apressados e nervosos, pois o dia já clareava, os dois juntaram os cacos da cabeça e colocaram na Brasília bege do Gê.

Seguiram para a casa do José Efigênio e bateram à porta. Eram quase seis horas da manhã. Foram atendidos pela esposa dele sonolenta e atordoada com as novidades. Os dois entraram levando os cacos até o fundo do quintal, cavaram um buraco e enterraram a prova do crime. Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada e, como há 200 anos atrás, ninguém sabia quem havia sido o autor do roubo da cabeça do Tiradentes. Promessa selada, cada um foi descansar em sua casa, pois a noite havia sido muito longa.

Mas a paz durou pouco. Às nove horas, aproximadamente,a polícia estava na porta da casa do Gê e depois foi a vez do José Efigênio. Ainda sonolentos, os dois artistas foram levados à delegacia.

O delegado era homem vaidoso, vestia-se à moda sertaneja, com cinturão de fivela com cara de cavalo, calça apertada com gorgorão nas laterais, uma camisa xadrez e botas de salto alto.

Ao interrogar nossos artistas, o homem foi duro. Acusou-os de haver roubado um bem público. Aquela cabeça havia sido doada à Polícia Militar e eles foram pegos em flagrante. Algumas pessoas, esperando ônibus do outro lado da praça, viram tudo, anotaram a placa do carro e ligaram para a polícia denunciando o roubo. O carro foi encontrado e com restos de gesso. Não havia como negar, as provas estavam ali.

José Efigênio ainda tentou explicar ao delegado que eles só haviam repetido o feito histórico de 200 anos atrás, mas o delegado não sabia nada de história e nem queria saber.

A coisa estava nesse ponto quando passou por ali o vereador Flávio Andrade, e quis logo saber o que estava acontecendo. Ciente da situação, levou o José a casa dele onde desenterraram a prova do crime. Aproveitaram para pegar um livro onde estava escrita a história do roubo da cabeça. Telefonaram para o diretor da Escola de Artes que os tranqüilizou dizendo que tinha outras cabeças de Tiradentes.

De volta à delegacia, onde havia permanecido o Gê, mostraram ao delegado o livro e pediram que telefonasse ao diretor da Escola de Artes. O delegado assim o fez e ficou sabendo que existiam outras cabeças e que o roubo fazia parte das comemorações.

Soltos, os dois foram colher os frutos de sua louca ação.

De manhã, pessoas que passaram pela praça, vendo a gaiola vazia pensaram:

- É Ouro Preto não tem jeito. É terra de vândalos, não respeitam nada.

Outros tiveram reação oposta, como a funcionária do Museu da Inconfidência que, ao abrir a janela, viu a gaiola vazia e suspirou aliviada pensando:

- Enfim alguém roubou a cabeça do Tiradentes. Era assim que tinha de ser.  O vereador amigo disse que ficou com inveja, ele gostaria de ter sido o autor do roubo da cabeça.

Na rua, por onde passavam os dois artistas eram cumprimentados por todos. A cidade inteira sabia o que tinham feito através da rádio ou dos cochichos. A maioria havia aprovado. Era a resposta do povo ao autoritarismo de todos os tempos.
                                            
(Texto adaptado do livro “Tesouros, fantasmas e lendas de Ouro Preto”, de Angela Leite Xavier).

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