sábado, 27 de novembro de 2010

A dois passos do inferno

Apenas uma foto difere a primeira página do "Jornal do Brasil" dos demais jornais do País de terça-feira, dia 4 de junho de 2002. Três velhos latões alaranjados repousam, com suas bocas sujas de fogo, sobre um barranco no meio do mato. As suspeitas que recaem sobre essas corriqueiras peças de lixo urbano, porém, são alarmantes: um desses latões pode ter sido o depósito dos restos humanos do repórter Tim Lopes, da rede Globo.
O jornalista de 50 anos está desaparecido desde o último domingo, quando colhia imagens para uma reportagem sobre o suposto aliciamento de menores num baile funk promovido pelo tráfico na Favela Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. Lopes atendia ao pedido da população do bairro vizinho, a Penha, para flagrar o desatino que punha em risco a moral de suas famílias, se comprometendo a ajuda-lo com informações sobre o baile que, segundo relatos, acontecia com sessões de sexo explícito com menores de idade e consumo de drogas. Tim voltava ao terreno que lhe conferiu o Prêmio Esso do ano passado - o primeiro no jornalismo televisivo --, ao lado da jornalista Cristina Magalhães, para filmar com uma micro-câmera a feira livre de drogas que costuma acontecer em sua rua principal.
Tempo também suficiente para que Tim seja encontrado e seu trágico destino, que na terça-feira foi traçado de forma tão nefasta, não se confirme. E é justamente essa apreensão que toma de assalto os profissionais de jornalismo e o próprio jornalismo no país. Porque, caso se confirme o assassinato de Tim pelo tráfico local, a imprensa estará acossada e sujeita, como afirma o artigo de Nelson Hoineff no próprio "Jornal do Brasil", a um novo tipo de censura que poderá se instalar sem precedentes sobre sua historicamente sofrida liberdade, tendo como promotor o crime organizado.
Hoineff comenta os avanços conquistados pelo telejornalismo investigativo com repórteres como Tim Lopes, trazendo para a sociedade a luz do problema detectado com a "límpida" imagem do fato, captado tal como ele é, o que jamais conseguiu o jornalismo analítico. A virada desse novo século foi particularmente tocada por essas imagens que vêm revelando ao mundo e ao Brasil o realismo surpreendente dos fatos, como os atentados de 11 de setembro (mesmo que captado sob surpresa), a verdadeira destruição da cidade de Jenin pelo exército de Israel (mesmo que captada tardiamente), a face cruel do médico pedófilo em pleno aliciamento de menores (mesmo que captado pelo próprio acusado), a frieza dos políticos corruptos em negociata nas dependências da própria prefeitura numa cidade do interior fluminense (em mais um trunfo da emissora carioca).
A nova censura - legitimada pelos altos índices de violência nas cidades e pelo constante desafio do crime organizado frente às instituições - poderá causar, segundo Hoineff, um efeito retroativo nessa inovadora maneira de se fazer jornalismo. E estará deixando a sociedade ainda mais desarmada frente aos descalabros que lhe são impostos com a fúria que só quem presenciou um ato violento pode saber - e jamais esquecer - como de fato aconteceu.
Mesmo com o difícil esquecimento, o registro da imagem é uma fundamental arma de denúncia. Afinal, de que resultaria a constante luta para que não seja esquecido o Holocausto, se não houvesse aquelas imagens que nos tomam o peito de tristeza e de lamento ao revelar o genocídio de suas vítimas? (Mesmo que essas imagens, é sempre bom lembrar, jamais consigam reparar tamanha crueldade).
Márcio Dal Rio Pinheiro

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